Jamais Fomos Modernos
E porque é importante lutarmos contra o reducionismo científico
Vocês já tiveram tempo para ler a palavra de Bruno Latour hoje? Se você não conhece ele ainda, Latour foi um filósofo, antropólogo e sociólogo Francês (1947-2022) que trouxe muita algazarra para os campos de ciência e tech. O cara revolucionou a forma de pensar a relação entre ciência, tecnologia e sociedade, criticando a divisão moderna entre natureza e cultura. Enfatizou como o conhecimento científico é construído através de redes complexas envolvendo humanos e não-humano.
Não sei vocês, mas para mim, isso é o suficiente para estabelecer o crush: alguém dizendo que modernidade não é sobre progresso das máquinas e produtividades mas sim integração de humanos e não-humanos em sociedade, com cultura e natureza se atravessando o tempo todo. Gente. Sério. *VEM NI MIM LATOUR*
A psicologia nas suas muitas abordagens, ora encontra esses atravessamentos e se debruça neles, ora passa batido como um carro numa rua de paralelepípedos com destino certo (ninguém passa imune mas o movimento segue). Embora Latour não tenha entrado em psicologia, Deleuze e Guattari beberam dessa fonte e criaram a esquizoanálise que além de uma abordagem psi é também uma filosofia ampla e multifacetada (toca artes, políticas, economia, ecologia, etc), propondo uma cartografia das linhas de desejos e dos dispositivos de poder que nos atravessam.
Entender as críticas de Latour e trazê-las para clínica permite ao observador cultivar o estranhamento diante do que hoje chamamos de modernidade e tudo que vem com isso.
Tá, mas e daí? E daí que eu tenho certeza que você conhece alguém com TDAH, se não for você mesmo a pessoa diagnosticada, e esse número quase dobrou nos últimos 20 anos no Brasil. Como que explica isso?
Assim como praticamente TUDO na psicologia - depende. Mesmo adotando a esquizoanálise como abordagem preferida, eu não vou defender que TDAH não existe ou que o diagnóstico não é válido. Mas o ponto onde eu queria chegar é: reduzir a psicologia a uma ciência puramente cerebral (alo alo indústria farmacêutica!) é cair na armadilha da modernidade que Latour tanto criticou. Quando limitamos nosso olhar apenas aos processos neurológicos, esquecemos que o ser humano é, antes de tudo, um nó em uma rede complexa de relações. O cérebro não existe no vácuo (desculpa coach da positividade tóxica) - ele pulsa em corpos que interagem com tecnologias, instituições, outros seres vivos, clima, geografia, economia, e uma infinidade de não-humanos.
Em tempos de respostas rápidas para problemas complexos, é muito desafiador aceitar que os processos psíquicos não devem ser encarados assim por, invariavelmente, terem atravessamentos múltiplos.
O que realmente pega para mim e tem me assolado desde a faculdade (eu entrei na psicologia para desvendar a psique humana e aprender a ler pessoas -risos- e me formei entendendo que cada psique se forma de um jeito único e as variáveis as vezes são inimagináveis para o analista #xatiada), é entender que a “ciência psicológica” para compreender o humano, precisa abandonar a miragem da pureza disciplinar e abraçar a perspectiva híbrida que Latour nos oferece. Precisamos de uma psicologia que não apenas estude o cérebro isolado, mas que mapeie as redes heterogêneas onde o sofrimento, o desejo e a subjetividade emergem. Uma psicologia que reconheça que não somos apenas indivíduos com transtornos, mas coletivos de humanos e não-humanos produzindo modos de existir.
Como psicólogos (e humanos em geral), temos a responsabilidade de resistir à tentação reducionista e desenvolver métodos capazes de captar a complexidade dessas redes. Só assim superaremos a noção de que somos seres destacados do mundo, com cérebros que funcionam como ilhas de racionalidade em um mar de objetos inertes.
Latour, eu e a esquizoanálise te convidamos a pensar além dessas fronteiras artificiais, a mapear os seus atravessamentos e a reconhecer que nunca fomos modernos - e que talvez esse seja nosso maior trunfo.
Como esse papo te atravessou? Conta pra mim :)
Fiquei curioso pra saber como é essa psicologia que engloba todo o resto. Como isso influencia na clínica? É uma questão de mudar o gabarito com o qual o psicólogo analisa a conversa ou é toda uma gama diferente de ferramentas pra se extrair insights em conjunto com o paciente?
De qualquer forma sempre que algo se mostra mais complexo do que parecia, eu curto. Lembro que já participei de algumas sessões de terapia anarquista e gostei bastante, justamente pelo fato de abordarem as questões de forma coletiva e com os atravessamentos das superestruturas moldadas pelo capital.
Não conhecia o Latour, vou dar uma pesquisada!
Que abordagem interessante! Nunca havia sido impactado e olhado para a abordagem de psicologia por esse ponto de visto. Chega a parecer óbvio mas o óbvio precisa ser dito.